O risco é uma característica inerente à sociedade. Tanto que para diversos autores que lidam com o tema em suas mais diversas variantes, só podemos falar de riscos quando existe alguém ou um grupo de pessoas (comunidade, classes sociais...) que pode perder algo, ter prejuízos, que está sob ameaça de algo (cf. Yvette Veyret; Franz Brüsek; Antoine Bailly, dentre outros). Desta maneira, os riscos antecedem os desastres. Estar em risco é estar sob ameaça, mas é apenas a concretização dos riscos no futuro que origina o que chamamos de desastres.
Os desastres de Ilha Grande e Angra dos Reis, os terremotos no Haiti e as enchentes em São Paulo , por exemplo, levam-nos a pensar nas condições de risco (vulnerabilidade), nas medidas preventivas e na capacidade de resposta institucional rápida e ágil, no momento em que ocorrem os acidentes.
Dados estes últimos acontecimentos, gostaria de trazer ao debate duas questões que julgo pertinentes:
a) a noção de desastre natural;
b) a discussão de evento e de processo
Refletindo sobre o que via na televisão sobre os desastres, lembrei-me de um livro que li em 2008. “Enseigner les Risques Naturels: pour une geographie phisyque revisitée”, de um grupo de estudos francês chamado CHAM'S (Chamonix-Sérignan). Penso que todos devem ter passado por experiência similar: sabem quando encontramos naquele livro em que lemos conceitos ou mesmo idéias que já pensávamos há algum tempo, mas não tínhamos como escrevê-la? Segue um destes trechos que “me perturbava” há algum tempo, com minha tradução livre:
Os estudos acerca das representações espaciais nos lembram claramente que todos os fenômenos físicos se inscrevem em um contexto ideológico, histórico e constitui uma narrativa de uma dada época (...). É esse contexto que fornece um sentido e uma pertinência ao discurso científico. Fenômenos físicos não são somente naturais. As catástrofes ganham sentido (se revelam) quando elas atingem o homem ou seus bens (Bailly, 1994)[1].
Quando houve os movimentos de massa em Angra dos Reis e a imprensa logo começou a usar a expressão desastre natural veio-me a lembrança desta passagem do texto. Enquanto pensava em escrever algumas modestas linhas sobre Angra, ocorreu o terremoto no Haiti.
Se as catástrofes (ou os desastres) ganham sentido apenas quando atingem o homem, talvez fosse mais apropriado designarmos estes desastres de sociais, em vez de naturais. Digo isto, pois não julgo possível falarmos de um desastre natural sem vítimas humanas, sem perdas materiais ou imateriais para a sociedade.
Em muitos veículos de comunicação observamos o uso e a referência à “desastres naturais”, mas o que houve aqui no Rio de Janeiro ou no Haiti (podemos estender para as cidades do interior paulista e as enchentes regulares na grande capital deste estado) não pode ser um desastre natural. É a sociedade que perde e não a “natureza” (compreendida como oposto do que é produzido pela/por cultura). No mínimo, “desastre natural” pode servir aos leigos; no máximo pode servir a interesses em desviar a responsabilidade pelo erro e pelo prejuízo com os fenômenos naturais que sempre ocorreram.
Há um outro aspecto que gostaria de discutir. Os fenômenos naturais são tratados muitas vezes apenas como eventos. Contudo, são processos. Existe aqui uma diferença de fundo conceitual. Enquanto evento fornece uma noção de eventualidade, acontecimento simples e isolado; processo fornece uma idéia mais elaborada de sucessão de fenômenos em uma linha diacrônica. É um percurso, um caminho, em que a variável tempo não é o tempo histórico, e sim o tempo geológico.
Os movimentos de massa como os que infelizmente vimos não são eventos únicos, são processos acumulados no tempo. Não foram as chuvas daqueles dias que trouxeram o solo e a vegetação abaixo, mas todo o processo gemorfológico de intemperismo, de erosão, de infiltração, movimentação e armazenamento de água naquele tipo específico de solo ao longo de um tempo maior do que imaginamos. No caso específico de Ilha Grande (RJ), sem termos grande conhecimento daquele sítio e do que os moradores daquela enseada realmente fizeram em termos de adaptação e alteração das condições originais, é bem mais provável falarmos de um processo desencadeado por condições objetivamente geomorfológicas, pedológicas e hidrológicas. No entanto, o desastre em si existe em uma dimensão social, humana, e não “natural”. Afinal de contas, ninguém chama o processo de abertura do oceano Atlântico ou a formação da serras do sudeste do Brasil, por exemplo, de desastres naturais... Não existe desastre para a natureza, apenas, ajustes, processos, evolução (conceito que para mim, modestamente, também é de difícil compreensão a partir de uma ótica estritamente natural) de situações geológico-geomorfológicas.
No caso de Angra, no continente, existe um longo histórico de deslizamentos ou movimentos de massa tanto no município como na região da Costa Verde. Estes deslizamentos são desastres sociais anunciados. As condições climáticas e geológico-geomorfológicas digamos, “ideais” para deslizamentos (encostas íngremes, solos rasos, grande quantidade de chuvas) são agravadas pelo crescimento urbano nas encostas, “ordenado” ou “desordenado”; casas pobres ou mansões; pouco importa. Já sabemos de longa data como estas intervenções alteram as condições geomorfológicas das encostas. As aglomerações urbanas deste tipo são bombas-relógio.
Esse problema é, sobretudo, urbano. A legislação nacional, ainda que recente (Estatuto da Cidade), possui alguns instrumentos que podem ajudar a mitigar estes desastres. As legislações setoriais (água, saneamento, solo urbano) devem ser articuladas, ainda que dificuldades e limitações existam. Contudo, na maioria dos lugares onde estes processos ocorrem, a ocupação está consolidada. O esforço para solucionar os problemas relacionados às enchentes e aos movimentos de massa, no Brasil, requer força colossal, pois se resume, a meu ver, a planejar e gerenciar o crescimento que é “orgânico” e aquelas áreas já consolidadas. Isto envolve diversos programas setoriais, como habitação, saneamento e emprego. Contudo, para mim, uma das dificuldades está justamente na pouca articulação das políticas setoriais. A postura das autoridades governamentais e da inteligência técnica nacional deve ser pró-ativa e não reativa. Por isso reforçamos que as análises de riscos são prementes nestes casos.
No colonial Haiti, a situação não é diferente no que tange a discussão do “desastre natural”. O processo terremoto é natural, mas o desastre é social. O diferencial é a junção de um processo endógeno que libera muita energia em pouco tempo em um local populoso e extremamente carente de toda a infra-estrutura mínima para níveis decentes de habitabilidade, quem dirá para o enfrentamento coletivo de um terremoto de nível sete na escala logarítmica de Richter. O cômico-se-não-fosse-trágico é o mundo das personalidades capitalistas doando quantias milionárias sabe-se lá para o gerenciamento de quem. Quem é o tesoureiro do Haiti agora? O Haiti não precisava desta ajuda antes? Até dívida será perdoada agora.
Não há certeza e soluções definitivas, mas um caminho concreto está nas posturas pró-ativas. As análises de risco sejam de qual tipo for, por mais que trabalhemos sempre no campo da incerteza (e no que tange a Geologia no Princípio do Atualismo), buscam capturar as condições que enfrentaremos no futuro. A análise de risco não se deve fazer onipotente e onisciente, nem alçar a técnica como a fonte de toda a segurança e certeza. Risco zero é uma ilusão fornecida pelas companhias de seguro. Entretanto ao se conhecer as variáveis sociais e/ou naturais e os elementos em risco e sua vulnerabilidade, então, os desastres podem ser transformados em possibilidades, ao invés de certezas de verão.
Cleber Marques de Castro
[1] Bailly, A. Enseigner les Risques Naturels (chapitre 9). In: CHAM’S. Enseigner Les Risques Naturels. Pour une Geographique Phisique Revisitée. Paris/Montpellier. Anthropos. GIP RECLUS. 1994.
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